Em 26/06, o julgamento do Supremo Tribunal Federal (“STF”) quanto à constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet (“MCI” – Lei nº 12.965/2014) foi concluído, com a fixação de tese de repercussão geral com base nos debates realizados. Houve mudanças relevantes na responsabilidade civil de provedores de aplicativo, que podem trazer a necessidade de ajustes operacionais em plataformas e aplicativos e na estrutura das empresas que operam no Brasil.
Abaixo, estão as principais informações sobre o assunto desenvolvidas, em conjunto, pela nossa equipe de societário, contencioso cível e tecnologia.
1. O que é uma tese de repercussão geral e qual a importância disso?
É uma das poucas exceções no Brasil nas quais o julgamento de um tribunal se torna vinculante. Trata-se de uma tese jurídica firmada pelo STF sobre o seu entendimento de um assunto constitucional. Uma vez definida, essa tese deve passar a ser aplicada uniformemente em todos os casos semelhantes que tramitam no judiciário e vincula os demais tribunais e juízes.
2. Qual foi a decisão do STF?
Por maioria (8 votos a 3), o STF decidiu pela inconstitucionalidade parcial do artigo 19 do MCI.
De acordo com as justificativas apresentadas pelos ministros que votaram a favor da inconstitucionalidade, “há um estado de omissão parcial que decorre do fato de que a regra geral do art. 19 não confere proteção suficiente a bens jurídicos constitucionais de alta relevância”.
3. Antes do julgamento, qual era a regra de responsabilidade civil dos provedores de aplicação?
Regra Geral: dever de agir só surgia após ordem judicial.
O artigo 19 estabelece que provedores de aplicações de internet (como redes sociais, por exemplo) somente poderão ser responsabilizados civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se: (i) for emitida uma ordem judicial específica determinando a remoção do conteúdo; (ii) que indique de forma clara e individualizada o conteúdo a ser removido; e (iii) a empresa não adotar as providências necessárias para tornar o conteúdo indisponível.
Importante destacar que esse dispositivo não se confunde com o “safe harbor” do DMCA norte-americano, uma vez que o MCI exclui expressamente os direitos autorais de seu escopo. Atualmente, não há no Brasil uma legislação equivalente ao DMCA, e a jurisprudência brasileira entende que, em matéria de direitos autorais, a responsabilidade surge da não remoção do conteúdo após o recebimento de notificação.
Exceção: dever de agir após mera notificação extrajudicial.
O artigo 21 do MCI foi frequentemente citado na fundamentação dos votos dos ministros no julgamento em questão, logo se torna importante entender a sua redação. Esse artigo é uma exceção à regra do art. 19 do MCI. Estabelece que em casos de violação da intimidade de indivíduos pela divulgação, sem autorização, de imagens, vídeos ou outros materiais com cenas de nudez ou de caráter sexual privado, o provedor de aplicação será subsidiariamente responsável se, após notificação extrajudicial, não agir com diligência para tornar o conteúdo indisponível, nos limites técnicos de seu serviço.
Adicionalmente, o parágrafo único do artigo 21 toma cuidado ao deixar claro que referida notificação deverá conter, sob pena de nulidade: (i) elementos que permitam a identificação específica do material apontado como violador; e (ii) verificação da legitimidade para apresentação do pedido.
4. Após o julgamento, como passa a ser a responsabilidade dos provedores de aplicação?
Regra geral: dever de agir após mera notificação extrajudicial, que atenda os critérios do art. 21 do MCI.
Exceção 1: dever de agir independentemente de notificação extrajudicial ou decisão judicial em casos específicos: (i) anúncios ou impulsionamento pago de conteúdos; e (ii) quando for detectado o uso de redes artificiais de distribuição ilícitas usando robôs.
Exceção 2: dever de agir apenas com ordem judicial: (i) nos casos de crimes contra honra; e (ii) provedores neutros, que não interferem sobre os conteúdos, como serviços de e-mail, aplicativos para realizar reuniões fechadas e serviços de mensagens instantâneas (como o WhatsApp).
Falha sistêmica de moderação: dever de agir independentemente de notificação, em situações específicas (com rol taxativo), caso exista uma falha sistêmica de moderação.
5. Qual é a tese aplicada para a regra geral?
Os provedores serão responsabilizados civilmente, nos termos do artigo 21 do MCI, quando deixarem de indisponibilizar conteúdos ilícitos ou criminosos após o recebimento de notificação extrajudicial.
Sendo assim, não é mais necessária uma ordem judicial para que empresas sejam obrigadas a remover conteúdos ilícitos ou criminosos de suas plataformas.
6. Qual é a exceção 1 na qual existe responsabilidade por presunção de ilicitude?
Existem duas hipóteses nas quais a responsabilidade civil dos provedores de conteúdo advém da presença do conteúdo em si, independentemente de notificação prévia ou decisão judicial. São elas: (a) anúncios ou impulsionamento pago de conteúdos, já que nesses casos a plataforma aprova a publicidade; e (b) quando for detectado o uso de redes artificiais de distribuição ilícitas usando robôs. A lógica é que, nesses casos, há uma presunção de que a plataforma tinha conhecimento da ilicitude. Essa responsabilidade somente poderá ser afastada se o provedor de aplicação provar que agiu em tempo razoável e com diligência para remover o conteúdo.
7. Qual é a exceção 2 na qual o art. 19 do MCI ainda se aplica?
No caso de crimes contra a honra (calúnia, difamação e injúria), permanece aplicável a exigência do art. 19 do MCI, ou seja, a responsabilidade civil decorre do descumprimento de ordem judicial. Sem prejuízo, isso não impede que o conteúdo possa ser removido mediante notificação extrajudicial.
O foco aqui foi proteger a liberdade de expressão, evitando censura e remoção de conteúdos que veiculem críticas, ainda que incômodas. No entanto, se o Judiciário entender que um determinado caso é de crime contra a honra e determinar a remoção, os provedores devem remover publicações com conteúdo idêntico, a partir de simples notificação, sem necessidade de novas decisões judiciais.
Ainda, o art. 19 do MCI continua a valer para troca de comunicações interpessoais, que são protegidas por sigilo constitucional em provedores neutros, que não interferem sobre os conteúdos, como serviços de e-mail, aplicativos para realizar reuniões fechadas e serviços de mensagens instantâneas (como o WhatsApp) .
8. O que ocorre no caso de falha sistêmica na moderação de conteúdo?
Em hipóteses específicas, os provedores serão responsabilizados quando não promoverem a remoção imediata de conteúdos que configurem crimes graves, listados de forma taxativa. Nesse caso, a responsabilidade decorre de falha sistêmica de moderação, e não de casos pontuais e isolados.
Os crimes graves indicados nesta lista taxativa são:
Finalmente, a tese é cuidadosa ao determinar que, neste caso, o usuário pode solicitar judicialmente o reestabelecimento do conteúdo tornado indisponível, caso comprove ausência de ilicitude. Nessa hipótese, não haverá dever de indenização por parte da plataforma.
9. O que ocorre em casos de replicação sucessiva de conteúdo ofensivo?
Nos casos em que um conteúdo ofensivo já tenha sido reconhecido como ilícito por decisão judicial, as plataformas deverão remover automaticamente todas as publicações idênticas, sem necessidade de nova decisão judicial, mediante notificação judicial ou extrajudicial.
10. Foi determinada a presunção de responsabilidade?
Não, em todos esses casos, a responsabilização é subjetiva, ou seja, demanda análise de culpa ou dolo da plataforma.
11. Quais são os deveres adicionais fixados pelo STF?
Além da nova sistemática de responsabilização, o STF determinou que os provedores devem:
12. Provedores de aplicativo precisam constituir sede e ter um representante no Brasil?
A tese dispõe que provedores de aplicativo precisam constituir e manter sede e representante legal no Brasil, cuja identificação e informações para contato devem ser de fácil acesso.
Essa representação deve conferir ao representante, necessariamente pessoa jurídica com sede no país, plenos poderes para (a) responder perante as esferas administrativa e judicial; (b) prestar às autoridades competentes informações relativas ao funcionamento do provedor, às regras e aos procedimentos utilizados para moderação de conteúdo e para gestão das reclamações pelos sistemas internos; aos relatórios de transparência, monitoramento e gestão dos riscos sistêmicos; às regras para o perfilamento de usuários (quando for o caso), a veiculação de publicidade e o impulsionamento remunerado de conteúdos; (c) cumprir as determinações judiciais; e (d) responder e cumprir eventuais penalizações, multas e afetações financeiras em que o representado incorrer, especialmente por descumprimento de obrigações legais e judiciais
13. Antes do julgamento, havia esse dever legal de constituição de uma sede ou de ter representação no Brasil para provedores de aplicação?
Não, com a exceção de poucas situações na qual tal exigência decorria de questões societárias. Avaliamos os votos orais de todos os Ministros e a realidade é que esse ponto foi muito pouco debatido, só sendo mencionada de forma expressa por 3 dos 11 Ministros, que não deram uma fundamentação muito clara para a exigência.
A tese menciona a necessidade de manutenção de sede e de representante legal no Brasil como dois requisitos obrigatórios, e não como requisitos alternativos, posição que permitiria o cumprimento da exigência por sociedades estrangeiras, sem necessidade de constituição de subsidiárias sediadas no Brasil.
Esse ponto é muito polêmico e delicado, e estamos realizando uma avaliação cuidadosa de como os clientes devem se posicionar quanto ao assunto.
Esta determinação é um evidente aceno aos problemas que a justiça brasileira teve nos últimos anos com plataformas estrangeiras que atuam no Brasil sem representante legal no território.
14. A partir de quando a tese é aplicável?
A decisão produz efeitos prospectivos, respeitadas as decisões já transitadas em julgado.
15. Próximos Passos
Apesar da fixação de tese com repercussão geral, o STF enfatizou a necessidade de atuação do Congresso Nacional, para que elabore legislação específica capaz de suprir as lacunas identificadas.
Enquanto isso, recomendamos que empresas enquadradas como “provedores de aplicação” avaliem com cuidado como irão se posicionar frente a essa nova orientação jurídica no Brasil.
Permanecemos à disposição para esclarecer quaisquer dúvidas adicionais.