Publicado em 28/10/2021 - Notícia

A inoportuna criação de preço público sobre o transporte na cidade de São Paulo

Estadão

O contexto político e econômico atual tem mostrado que as recentes iniciativas legislativas tributárias não captaram os verdadeiros anseios da sociedade quanto à simplificação, à previsibilidade e à redução da carga fiscal, com vistas a aliviar os efeitos danosos causados em especial pela pandemia da COVID-19. Ao contrário, todas as propostas de reforma ou projetos de lei tributária invariavelmente têm contemplado regras que trazem aumento de complexidade e ônus para os contribuintes.

Não é diferente no Município de São Paulo que, oportunisticamente, viu no incremento das entregas de refeições e encomendas – o que foi motivado pela reclusão forçada decorrente da pandemia – uma possibilidade para aumentar a arrecadação, sem que se ofereça, concretamente, qualquer contrapartida à população.

Foi aprovado pela Câmara Municipal de São Paulo o Projeto de Lei 445/2021 – convertido na Lei 17.584/2021 -, de autoria do Poder Executivo, que cria um novo instrumento de arrecadação, com efeitos prejudiciais aos negócios na capital. Embora originalmente o projeto versasse apenas sobre a contratação de operações financeiras pelo Município, recebeu emenda contemplando a instituição de preço público a ser cobrado de empresas que explorem, no território paulistano, atividades econômicas intensivas no uso do sistema viário urbano. Seriam atingidos por essa cobrança os serviços de transporte de pessoas, os serviços de encomenda e entrega de mercadorias, bem como a sua respectiva intermediação por meio de plataformas digitais ou aplicativos eletrônicos.

Por ocasião da proposta da referida emenda, cogitou-se a criação de uma taxa de embarque ou desembarque no serviço de transporte de pessoas, ideia essa superada pela instituição do preço público, cujo escopo é bem mais abrangente.

Tal cobrança, acaso aprovada, poderá levar em conta diversos fatores, como por exemplo a quilometragem percorrida ou o impacto urbano causado pelas viagens iniciadas, finalizadas ou desenvolvidas parcialmente nos limites geográficos do Município. Porém, a adoção de tais critérios estaria submetida à discricionariedade do Poder Executivo Municipal, sem qualquer tipo de vinculação ou limitação objetiva quanto ao seu aspecto quantitativo.

Cumpre analisar a validade dessa exação, e especialmente se o uso da infraestrutura viária urbana poderia ser fundamento de cobrança de preço público.

Em primeiro lugar, preço público pressupõe a existência de um serviço público, o que parece não existir no caso da mera disponibilização de acesso de vias públicas, pois estas são bens da coletividade e o seu uso é um direito dos cidadãos, sendo que a manutenção dessa infraestrutura é um dever do Município.

Aliás, em função dessa constatação óbvia é que, parece-nos, não vingou a ideia de se denominar a cobrança como taxa. Todavia, o caráter compulsório dessa exação indica que a sua natureza jurídica é tributária, em conformidade com o disposto nos artigos 3º e 4º do Código Tributário Nacional (CTN).

Nos termos dos artigos 145, II, da Constituição Federal (CF) e 78 e 79 do CTN, as taxas podem ser cobradas em função da (i) utilização de serviços públicos específicos e divisíveis, fruídos ou potencialmente fruíveis, ou do (ii) exercício de poder de polícia, assim entendido como a atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público.

Nota-se que essa pretensa nova taxa, travestida de preço público, não encontra respaldo em qualquer das hipóteses acima contempladas, porquanto o uso das vias públicas não caracteriza serviço público específico e divisível, tampouco depende de concessão ou autorização do Poder Público a ensejar o exercício de poder de polícia municipal. Lembre-se, ademais, que o transporte de pessoas ou bens é matéria legislativa de competência privativa da União Federal (art. 22 da CF), não podendo os Municípios adentrar essa seara.

Fica evidente, portanto, que a criação desse preço público visa tão somente atender a uma finalidade arrecadatória. Tentativas similares foram fulminadas pelo Poder Judiciário, a exemplo do que decidiu o Supremo Tribunal Federal nos Recursos Extraordinários 581.947/RO (regime de Repercussão Geral), 811.620/MG (3º Agravo Regimental), 494.163/RJ (Agravo Regimental). Da mesma forma, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo afastou preço público criado pelo Município de São Bernardo do Campo incidente sobre o uso de vias e logradouros públicos em razão da implantação, instalação e passagem de equipamentos urbanos destinados à prestação de serviços de infraestrutura, conforme acórdão proferido no Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade nº 0158496-16.2012.8.26.0000.

Uma vez promulgada a lei que efetivamente crie essa exação, há de se acompanhar a sua regulamentação para se identificar outras eventuais inconstitucionalidades e ilegalidades. Seja como for, é possível concluir sem margem de dúvidas que além de onerar o custo do transporte para os usuários finais, esse tipo de cobrança será, à toda evidência, objeto de litígios, o que contribuirá para conturbar ainda mais o ambiente de negócios na maior cidade do país.

*Rodrigo Maito da Silveira e Mateus Tiagor Campos são, respectivamente, doutor pela USP e sócio de Dias Carneiro Advogados, e associado do mesmo escritório.

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