Publicado em 09/04/2019 - Notícia

LGPD: as propostas de emenda à Medida Provisória 869/2018

JOTA

A Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD (Lei nº 13.709/18) foi o primeiro instrumento nacional criado exclusivamente para o tratamento de dados pessoais. Com a lei, deixamos o antigo cenário jurídico, em que a utilização de informações pessoais por terceiros era regulada apenas em diplomas legais esparsos, e passamos a um novo patamar internacional, tendo um regramento sobre proteção de dados e privacidade.

A LGPD regulamenta o uso de dados pessoais tanto no meio físico quanto no meio digital, garantindo uma série de novos direitos aos titulares de dados, à semelhança ao que fez o General Data Protection Regulation (GDPR) na Europa. Por exemplo, indivíduos passam a ter o direito de consentir e retirar consentimento para a coleta e tratamento de dados, direito de acesso, direito de retificação e revisão de decisões tomadas por meios automatizados, dentre outros. A lei introduz, ainda, conceitos como o de controlador, operador e encarregado, estabelecendo obrigações a cada uma dessas figuras.

É inegável que a lei eleva o patamar nacional em relação à proteção de dados. Contudo, quando da sanção da LGPD, o então presidente Michel Temer vetou os artigos relativos à criação do órgão de fiscalização da matéria – Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) – alegando vício formal do processo legislativo, uma vez que a criação da ANPD seria de competência do Executivo. Esse veto criou uma debilidade na lei, que condiciona a eficácia de alguns artigos à uma autoridade que deixou de existir. Para corrigir a lacuna, foi editada a Medida Provisória nº 869 no fim do ano passado, recriando a ANPD e o Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade. Nos seis dias subsequentes à sua edição, foram oferecidas 176 emendas à MP. Ao todo, 44 deputados e senadores de 17 partidos apresentaram propostas.

Em vista da morosidade no trâmite de apreciação da MP e suas emendas, a votação dos textos entrou em regime de urgência e somente no dia 27 de março de 2019 foi constituída a comissão mista que avaliará as propostas. Em 28 de março, prorrogou-se a vigência da MP, que terá de ser votada até o final de maio, sob pena de perda de eficácia.

Em relação às emendas apresentadas ao texto da MP, nota-se que os artigos relacionados à ANPD foram os que mais despertaram o interesse dos parlamentares (sendo 48 emendas propostas somente para alteração do artigo 55), segundo mostra o gráfico abaixo. É notável que assuntos como o escopo de aplicação da lei (art. 4º), definições legais (art. 5º), hipóteses de tratamento (art. 7º), tratamento de dados sensíveis (art. 11), direitos dos titulares de dados (arts. 18 e 20), compartilhamento de dados (art. 26), deveres do encarregado pelo tratamento de dados (art. 41), dentre outros, chamaram a atenção dos parlamentares.

Emendas à LGPD

Gráfico indicativo do número de propostas de emenda por artigo da LGPD

O artigo 20 garante aos indivíduos o direito de solicitar a revisão de “decisões tomadas unicamente com base em tratamento automatizado de dados pessoais”. Os parlamentares sugeriram 13 emendas ao seu texto, cuja redação foi modificada com a edição da MP. A principal alteração diz respeito ao agente que deve realizar a revisão de uma decisão automatizada, quando esta for solicitada. Onze parlamentares propuseram que o artigo retornasse à sua redação original, incluindo-se, novamente, o qualificador “por pessoa natural” às revisões previstas.

A Proposta de Emenda nº 17 explica em sua justificativa que “a Medida Provisória nº 869/2018 criou uma possibilidade bastante preocupante: a de que o direito de revisão a tratamentos automatizados de dados seja exercido, na prática, pelos mesmos mecanismos automatizados que geraram o erro em primeiro lugar”. A mesma justificativa é ecoada nas Propostas de Emenda nºs 43, 50, 70, 83, 103, 130, 142, 151, e 158. A Proposta de Emenda nº 165 aponta ainda que reavaliar tais decisões, automatizadas, por processos também automatizados impede uma reavaliação efetiva, o que violaria o objetivo do próprio artigo.

As Propostas de Emenda nºs 5 e 111, por outro lado, buscam a supressão do poder de auditoria da ANPD para verificar se um controlador de dados agiu discriminatoriamente. Tal prerrogativa da Autoridade Nacional existe para casos em que o controlador se recuse a fornecer, com clareza, informações adequadas sobre os critérios e procedimentos de seu sistema de decisão automatizado. Em suas justificativas, ambas as propostas apontam para a preocupação com segredos industriais e a proteção de dados das empresas auditadas.

O tema central de todas as emendas gira em torno do conceito de discriminação algorítmica. Simplificadamente, a discriminação algorítmica ocorre quando, intencionalmente ou não, conceitos socialmente pré-estabelecidos são transferidos para as linhas de código que comandam a tomada de decisões automatizadas. Nos casos em que essa transferência ocorre, o algoritmo passa a reproduzir, em larga escala, uma lógica decisória falha. Algoritmos, contudo, são incapazes de questionar seus resultados e reconhecer um erro em suas decisões. Assim, garantir que a revisão de decisões automatizadas seja feita por pessoas naturais é crucial para a adequada aplicação da lei.

Já o evidente interesse pelo artigo 55 da LGPD pode ser explicado por alguns fatores. Por exemplo, toda a ANPD está regulada nesse artigo, que aglutina estrutura, características e competências da Autoridade Nacional. Ainda, a ANPD foi instituída pela Medida Provisória de maneira exponencialmente diferente daquela originalmente proposta pela LGPD, o que certamente atraiu um grande número de propostas de emendas.

Vale recordar que, inicialmente, a Autoridade Nacional constava no projeto de lei aprovado em agosto de 2018. Contudo, todas as disposições relativas a este órgão foram vetadas pelo então Presidente Temer, sob a alegação de vício formal. Por ser de autoria do poder legislativo, a LGPD não poderia criar uma autoridade ligada ao executivo, sob pena de violar a separação de poderes. Já que o veto não havia sido material, ficou-se na expectativa de um Decreto ou Medida Provisória que simplesmente formalizasse a criação da ANPD, sem incluir alterações substantivas.

Apesar de o ex-Presidente ter, de fato, editado uma Medida Provisória, houve alteração substancial de conteúdo e formato propostos na MP para a Autoridade Nacional. O produto final muito se distancia tanto da ANPD originalmente vetada, como dos modelos de autoridade de proteção de dados até então criados.
Nesse sentido, ressalta-se que a principal modificação introduzida pela MP foi a instituição da ANPD como pertencente à administração pública direta, integrante da Presidência da República. Originalmente, a ANPD possuía regime autárquico especial, com vinculação ao Ministério da Justiça, garantindo-lhe autonomia funcional e financeira. As propostas de emenda ao artigo 55, portanto, focam majoritariamente na tentativa de restabelecer à ANPD sua independência. A preocupação, neste cenário, é que uma Autoridade Nacional vinculada institucional e financeiramente à Presidência deixe de ter a autonomia necessária para regular adequadamente a LGPD e, assim, proteger os direitos garantidos na lei de forma efetiva.

Em suma, é evidente a importância da MP 869, já que seu texto modifica diversos pontos fundamentais da LGPD e cria a Autoridade Nacional de Proteção de Dados, instituição essencial para a eficácia e apropriada aplicação da lei. Apesar de seus benefícios, a aprovação da MP 869 chamou a atenção dos parlamentares para a necessidade de alterações aos textos, tanto da LGPD, como da MP e até mesmo do Marco Civil da Internet. De forma geral, alguns dos direitos individuais garantidos pela LGPD carecem de especificações, mas as propostas de emenda demonstram particular preocupação com o direito de revisão de decisões 100% automatizadas.
Já em relação à criação da ANPD, a aprovação da MP 869 passou a permitir ingerência do Poder Executivo sobre a autoridade reguladora. Isto porque, sob a redação atual da MP, a Autoridade Nacional fica subordinada à Presidência e não possui fluxo de capital próprio. Nesse sentido, as emendas ao artigo 55 da LGPD asseguram o funcionamento independente da ANPD.

Dessa forma, deve-se reconhecer os méritos da MP 869 em sanar vícios originados na LGPD e especificar certos direitos individuais. Entretanto, isso não isenta a Medida Provisória de falhas. As propostas de emenda analisadas reparam os problemas criados pela Medida Provisória. Em sua maioria, as emendas buscam adequar a legislação aos princípios que a própria LGPD elenca, dentre eles a autodeterminação informativa, a transparência, e os direitos humanos. A revisão por pessoa natural para decisões totalmente automatizadas e a autonomia funcional e financeira da ANPD são pontos cruciais para o adequado funcionamento da Lei Geral de Proteção de Dados.

BÁRBARA EMIDIO NASCIMENTO – Graduanda em direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e estagiária do Dias Carneiro Advogados.
BERNARDO DE SOUZA DANTAS FICO – Mestrando pela Northwestern Pritzker School of Law e graduado em direito pela Universidade de São Paulo.
JULIANA DA CUNHA MOTA – Advogada de tecnologia e proteção de dados do Dias Carneiro Advogados, graduada em direito pela Universidade de São Paulo e Mestre pela Universidade de Cambridge.