Publicado em 03/08/2018 - Notícia

Batalha jurídica deve marcar tributação de fundo fechado

Valor Econômico

A nova proposta do governo para tributar os fundos fechados usados para consolidar os investimentos das famílias mais ricas com o “come-cotas”, o imposto semestral que já incide nos multimercados e fundos de renda fixa abertos, traz as mesmas contradições do texto original da Medida Provisória 806, sem prever as melhorias que o projeto teve até caducar em abril.

A cobrança do imposto sobre o estoque de rendimentos voltou a constar no projeto de lei (PL nº 10.638) encaminhado pelo Executivo ao Congresso nesta semana. Esse é o ponto que deve reabrir uma série de discussões jurídicas e que ancora a arrecadação estimada de R$ 10,7 bilhões para os cofres públicos.

Quando o come-cotas sobre os rendimentos dos fundos abertos foi instituído em 1997, o governo conseguiu tributar o estoque, apesar de algumas tentativas de questionamentos que não avançaram. Mas o julgamento, em 2013, de uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI 2588) pelo Supremo Tribunal Federal (STF) – referente à cobrança de imposto sobre lucros auferidos no exterior, decorrente de autuação da Receita em cima da MP 2158/35, de 2001 – pode servir de base para contestar a cobrança nos fundos, afirma a tributarista Ana Cláudia Utumi, do Utumi Advogados.

“O STF declarou inconstitucional por entender que seria uma maneira disfarçada de tributação retroativa. É similar ao lucro dos fundos”, afirma. “Não que [o lucro no exterior] não fosse tributável, não era isento, seria tributado quando houvesse a distribuição [de dividendos]. Eu entendo que não pode ter cobrança retroativa, esse é um dos princípios fundamentais da Constituição.”

Se a Receita Federal se apoiar na posição de que está criando um novo fato gerador, há argumentações jurídicas para os dois lados, diz Flavio Mifano, sócio do escritório Mattos Filho. “Não seria considerada uma cobrança retroativa. Se for mantido no projeto de lei, vai ser levado para o Judiciário solucionar para ver qual das interpretações vai prevalecer”, diz. “O ponto da arrecadação imediata decorre da tributação do estoque. Se não tiver isso e for só no resgate, preserva-se o diferimento e o impacto é menor.”

A cobrança do imposto semestral por si só já é considerada uma distorção nos fundos abertos porque antecipa um tributo antes de o investidor usufruir dos recursos. Se houver cota negativa depois, não há compensação.

“O come cotas em fundo aberto já é bizarro, agora a gente vai trazer isso para o fechado”, diz Guilherme Cooke, sócio do Velloza Advogados. Ele cita que o imposto semestral foi concebido em cima dos fundos de renda fixa que em tese não sofreriam perdas pelo caminho. “Mas quando entra num multimercado volátil, a chance de em determinado semestre o investidor pagar IR sobre o ganho e no seguinte só perder dinheiro e não compensar é grande. E acabou a brincadeira, vai pagar imposto sobre um dinheiro que não viu.”

A alteração das regras no meio do jogo expõe certa fragilidade para o ambiente de investimentos no Brasil, aponta Hermano Barbosa, sócio do BMA. “Quando o investidor aplicou o seu dinheiro, ele tinha uma certa expectativa [de retorno], pesada e avaliada se valia colocar naquele ativo ou em outro. A mudança no meio do caminho sinaliza insegurança, além de ser questionável juridicamente, é muito ruim.”

Para Antonio Amendola, sócio do Dias Carneiro Advogados, o mais adequado teria sido haver uma regra de transição que mantivesse, para rendimentos auferidos até 31 de dezembro de 2018, o regime fiscal atual, com a nova regra valendo a partir de janeiro de 2019. Foi esse tipo de revisão que entrou na MP 806, que perdeu a validade sem o Congresso votar.

Na essência, o novo projeto de lei preserva as linhas da MP 806, incluindo a diferenciação de fundos de investimentos em participação (FIP) como entidades de investimentos ou não. No segundo caso, os FIP familiares serão equiparados a uma empresa, não se valendo mais do benefício do diferimento do imposto. Por meio dessas estruturas, os cotistas poderiam comprar e vender ativos adiando a tributação e pagando o imposto somente sobre os valores amortizados anualmente.

Para Barbosa, do BMA, se vingarem as alterações propostas, o uso do FIP familiar tende a se tornar inviável como veículo de investimento. “Se tem o mesmo tratamento de holding, melhor usar a figura jurídica de holding”, diz.

Mifano, do Mattos Filho, acrescenta que o que o projeto de lei não traz é se após a tributação de pessoa jurídica no FIP não entidade de investimentos, se a amortização de cotas será isenta. O FIP puro sangue, efetivamente usado para investir em participações de empresas, também terá mudanças, na medida em que qualquer venda de ativos será considerada lucro distribuído e, portanto, tributável, diz.

O especialista destaca algumas melhorias no texto do PL em relação à MP 806. Por mais questionável que seja a incidência do come-cotas, o novo projeto equipara a metodologia àquela usada nos fundos abertos, com cobranças em maio e novembro, às alíquotas de 20% ou 15%, dependendo da classificação fiscal do fundo, se de curto ou longo prazo.

Outro ajuste refere-se ao papel do administrador, o responsável tributário pelos recolhimentos. Como há casos em que o imposto incide em ativos ilíquidos – como ações de empresas fechadas num FIP familiar- ficou estabelecido que o cotista tem que entregar o dinheiro para o banco fazer esse pagamento, ficando impossibilitado de ter acesso a qualquer amortização ou resgate enquanto não quitar a dívida fiscal, diz Barbosa, do BMA.